Sentença antes das
alegações. Por que o direito morre? Descubra
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Lá em 2014, André Karam Trindade e eu
denunciamos aqui que
uma juíza revogou a lei da Física e presidiu duas audiências ao mesmo
tempo. Na sequência,
escrevemos, ainda sobre o mesmo tema, “Kill the lawyers: para que
contraditório se já formei o convencimento mesmo?”E nada aconteceu. O
causídico impetrou HC. E... adivinhem. A resposta veio em francês: pas
de nullitésansgrief (não há nulidade sem prejuízo, como se o
prejuízo já não fosse decorrente da própria violação do devido processo
legal, da imparcialidade, das garantias, da dignidade e de mais um conjunto
de preceitos e princípios violados).
Agora, um novo caso (descoberto — fora os
que não são detectados) em São Paulo mostra como morre o direito,
parodiando o livro “Como As Democracias Morrem” (Steven Levitsky). Aos
poucos. À mingua.
A ConJur relata que antes de a
advogada terminar sua sustentação, a sentença já estava publicada (ver aqui).
Denuncio o desrespeito aos advogados quase que todas as semanas. Afinal, de
onde surgiu esse imaginário senso comum-dogmático de que direito é apenas
dois litigando e um decidindo ao modo como este quer?
Para alguém decidir antes de ouvir as partes
ou uma delas, o solipsismo parece ser a resposta óbvia. E o que é esse
solipsismo? Simples: algo como "não há nada que me convença do contrário
daquilo que já decidi". Ou "quando iniciou o processo eu já tinha
minha decisão pronta. Logo, para quê ficar ouvindo alegações?" Ou
não é assim?
Vida dura. Dura vida de advogado. Com essa
pandemia jurídica, agora mesmo estou tentando discutir o papel do Ministério
Público, a partir do projeto (aqui, aqui, aqui, aqui,
aqui, aqui —
inclui comentários de juristas) do senador Antonio Anastasia (PSD-MG) que foi
inspirado em
artigo meu aqui
da ConJur. E tenho dificuldade em convencer até mesmo uma parte
da dogmática processual, a mais garantista [1]. Imaginem a
outra... O mérito do projeto? Talvez o fato de estar recebendo críticas dos
dois lados. Deve ter algo de bom.
Nessa dura vida, minha procura é pelo paciente
zero da pandemia. De novo: por que temos de sofrer todos os dias essa
carga de autoritarismos e desrespeitos ao devido processo legal? Por que
temos de suportar propaganda de advogado fazendo meme,
desembargadora fazendo proselitismo
político em Turma do TRT,
"direito" ensinado por música, desrespeito ao artigo 489 do
CPC, jurisprudência sufragando jurisprudência defensiva como se o processo
fosse um obstáculo? Por quê? E até quando? Mas, tout vás trésbien,
Madame La Marquise (quem quiser saber sobre o livro "Paris, a Festa
Continuou", leia aqui).
Enquanto isso, por aqui, fazemos uma
transgenia jurídica. Ou um ornitorrinco dogmático. Não é uma coisa nem
outra. Por aqui, definitivamente, o Direito virou, mesmo, aquilo que o
Judiciário diz que é. Afinal, se a doutrina permite isso, é porque nos
acostumamos com isso.
Como o Direito morre? Do mesmo modo que as
democracias morrem. Isso tudo foi indo, foi indo. Antigamente era a velha
dogmática prêt-à-porter. Luis Alberto Warat já havia sacado
isso. Manuais simplificadores e que detinham o monopólio do ensino.
Alguns caricatos (os bons eram e continuam raros). E a comunidade jurídica
foi se acostumando. As democracias morrem porque os democratas permitem. Como
bem disse o Reinaldo Azevedo dia desses, os democratas pecam por omissão ou ilusão
nefelibata. Costumam ser tolerantes com quem sabota o regime na crença
ingênua de que, mais dia, menos dia, a civilização vence a barbárie. Morrem
com o clichê na mão.
Pois parece que os juristas estamos morrendo
com o clichê na mão. A parte sofisticada do Direito foi fazendo vistas
grossas à ala que foi transformando o Direito em uma mera racionalidade
instrumental. Em suma, o nefelibatismo venceu. Vejo cartazes e outdoors de
um procurador da "lava jato" vendendo
palestra-show. Espetáculo. Tudo em nome da democracia e da
tolerância. E eles avançam. E permitimos que um procurador da República poste
no Twitter a frase que depois o presidente da República usou
contra a jornalista Patrícia Campos Mello (a coisa do
"furo"). Mas tudo bem. Somos democratas. Tolerância, não é?
Peca-se por vários motivos. Alegações finais
são postadas no sistema e três ou quatro minutos depois lá está a sentença
pronta. E nada acontece. Sentença antes das alegações e, se alguém alegar
prejuízo, a decisão dos tribunais será em francês: pas de nullitésansgrief.
Parcialidade não é causa de nulidade, porque pas denullité....
Desrespeitar o artigo 212 do CPP é nulidade relativa (e o fundamento vem em
francês).
Como as democracias morrem? Como morre o
Direito? Simples. Morrem porque se deixa que morram. Não colocamos um basta.
Não cumprimos nosso papel. A doutrina não doutrina.
Não é possível que uma sentença seja proferida
antes de o advogado terminar seu trabalho. E mesmo que seja postada (hoje as
decisões são postadas no "sistema"), ainda assim fica a pergunta:
mas o juiz não tem de refletir sobre a prova? Se ele dispensou a palavra do
pobre causídico, então é porque ele tinha pré-julgado. Logo, se tinha
pré-julgado, não foi imparcial. Simples assim.
Continuemos assim e veremos o Direito
morrer. Direito como mera instrumentalidade — é assim que o direito
é visto pelo realismo retrô brasileiro — serve para qualquer coisa.
Daí a desembargadora faz aquilo; a juíza
aqueloutro; o advogado é destratado; decisões omissas, contraditórias ou
obscuras podem ser embargadas... só que não. Afinal, existe o livre
convencimento e o juiz não está obrigado a examinar todos os argumentos, se
já estiver convencido — embora o CPC determine o contrário. E pas
de nullité. Difícil, não?
E a juíza tem a sentença pronta, mas, bem, é
assim que é, não é mesmo? Como morrem as democracias? Como morre o Direito?
Cada um sabe. Só não quer admitir. E nem dizer.
Post scriptum: a morte de um Amigo
A coluna já fora enviada quando soube da morte
de meu ex-aluno e orientado de Doutorado Thiago Fabres de Carvalho.
Criminalista de mão cheia, inteligente, crítico. Morava em Vitória (ES).
Garantista da cepa. Quarenta e três anos. Deixa amigos como Juarez Tavares,
Alexandre Morais da Rosa, Aury, Rodrigo Machado, Jeferson Gomes, Jefferson
Amadeus, Alberto Sampaio, Antonio Santoro, Nelson Camatta, e tantos outros. E
este entristecido escriba. Que coisa. Fazer o que, a não ser prantear? E
recordar das coisas boas que passamos juntos.
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[1] Marcelo Cattoni e Diogo Bacha (artigo que
sairá na ConJur) estão me ajudando a tentar convencer parte dessa
comunidade jurídica. Com efeito, a consideração de que o Ministério
Público como órgão titular da acusação atue apenas como parte em todas as
fases da persecução criminal obedece a uma lógica privatista que não encontra
ressonância na estrutura processual-democrática no Brasil. Veja-se que, caso
adotada, não existiria os princípios da obrigatoriedade, indisponibilidade e
indivisibilidade da ação penal pública. Poderia, então, a parte dispor da
ação penal. Evidentemente, eis aí um ponto importante que ilumina o
projeto: embora titular da ação penal, o Ministério Público não é
titular do direito material.
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
200227 - Jurista Lenio Streck
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