Em livro sobre CPC,
juiz ironiza dificuldade financeira de advogados
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ABSTRACT: Na verdade, não sei se foi mera brincadeira, ironia
ou, de fato, o juiz quis tirar sarro das dificuldades dos sofridos causídicos
pindoramenses.
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Monteiro Lobato cunhou a expressão “Um país se
faz com homens e livros”. Livros a mancheias, disse Castro Alves. Não sou de
fazer embaixadinhas para a torcida. Esta coluna tem feito uma crítica
sistemática aos livros simplificados, mastigados, isto é, livros que dizem
nada sobre nada e, em vez de acrescentarem alguma coisa, prejudicam o
usuário. E tem feito críticas a coisas como “Emenda constitucional é como
silicone”, falando dos limites no que se diz sobre o Direito. Cabe qualquer
coisa em livros e salas de aula? A resposta é: não.
Certa vez profetizei que alguém inventaria
livros tuitados de Direito. Dito e feito. Pois não é que...! Sou
antigo nisso. Já nos 80 e 90 do século passado eu criticava a simplificação
da dogmática e do ensino jurídico. Gêmeos xifópagos que se agridem à faca,
Caio e Tício que naufragam e se agarram a uma tábua, conceitos como “agressão
atual é a que acontecendo”, “iminente é a que está por acontecer”, “coisa
móvel alheia é aquela que não pertence à pessoa”, Tício se veste de cervo e
leva um tiro no traseiro (para mostrar o que é erro de tipo) e assim por
diante.
Pois no século XXI nada mudou. Agora mesmo
recebi dezenas de mensagens pedindo para escrever sobre o novo livro de um
magistrado, chamado Código de Processo Civil Comentado. Até aí, nada demais.
O bizarro é o conteúdo. Falarei um pouco disso.
O livro pretende comentar a parte geral.
Vejamos a “profundidade”. Na parte da Cooperação Internacional, o autor diz:
“Também dispensam comentários aqui, merecendo consultas aprofundadas por
parte dos operadores do direito em cada caso concreto”. Eu também acho. Mas,
se o autor escreve um livro chamado “Comentários”, por que não comenta? É
evidente que o assunto demanda consultas... Ora, ora. É o paradoxo em que o
comentário é “Não vou comentar”.
Imaginem um médico escrevendo o seguinte, em
um livro sobre medicina chamado Comentários às doenças cardíacas, na
parte do colesterol: “Este assunto dispensa comentários... O médico que vá
consultar...”. Pois é. Deve consultar? Claro que deve. Mas o livro não
prometia comentários?!
Mas o livro também tem pretensão de ironizar.
Na parte da assistência judiciária, ele diz: “Hoje em dia até a maioria
dos advogados está merecendo a gratuidade”. Veja-se: como escrevi no abstract,
não sei a intenção do comentário. Pode ser uma crítica em solidariedade à
“maioria dos advogados” empobrecidos. Sim, pode. Por isso, quando falei, no
título da coluna, que ele fez ironia, estou sendo benevolente, porque a
ironia pode ser no sentido crítico, contra “esse estado de coisas”. Porém,
também pode ser deboche. Como se diz na linguagem comum, um sarro. Vá saber.
A linguagem salva e condena. É um pharmakon, dizia Platão. De todo
modo, como falei outro dia, parece certo dizer que a advocacia
se tornou um exercício de humilhação e corrida de obstáculos.
O artigo 56 do CPC diz o que é continência. E
o que escreve nosso autor? “O conceito de continência está aqui”. Pronto.
Para o advogado que não sabia o conceito, o autor indicou o caminho...
Brincando, ao menos, para tentar salvar o autor, eu poderia dizer o seguinte:
o comentário é uma aula de interpretação textualista. Talvez ele poderia escrever
um Comentários de lei ao juiz ativista e, debaixo de cada dispositivo,
escrever “O conceito está aqui”. Só assim.
Mas não há salvação. Quando o buraco já é
fundo, sempre há quem cave mais.
Na parte dos honorários, há um comentário que
dá tese de doutorado: “Os honorários advocatícios no novo CPC são um assunto
sério”. Também acho, Excelência. Todos os advogados também acham isso. Mas o
comprador precisa ler isso em um livro que pretende comentar o CPC? De novo,
o paradoxo.
Não se pode acusar o autor de prolixidade. Ao
comentar o dispositivo que trata da gratuidade e sucumbência (artigo 98), o
comentário certeiro é: “Trata-se de prazo decadencial”. Pronto. Porém, não há
para comentar? Poxa, tem uma porção de coisas... Há muita doutrina e
jurisprudência que o autor poderia trazer.
Já o parágrafo 4º que trata da concessão de
gratuidade e multas processuais, o comentário é: “Com justiça”. Mais
econômico, impossível. Muito útil para jovens advogados e para quem quer
passar no exame da OAB.
Ao comentar o artigo 119 — intervenção de
terceiros — o comentário é: “Muito raras as ocorrências de assistência”. Pois
é. Pode ser. Pergunta-se: um comentário não iria bem em um livro chamado...
CPC Comentado?
Há muito mais coisas. Vejamos o certeiro
comentário ao artigo 309, que trata da tutela concedida em caráter
antecedente: “Não há dificuldade na compreensão deste artigo: basta lê-lo com
atenção”. Claro. O dispositivo é autoexplicativo. Tutela é um assunto simples.
Qualquer um sabe. Basta ler o CPC... Talvez, de novo, o autor do livro seja,
inconscientemente, um fã de alguma corrente textualista scaliana no
Brasil. A ver.
Paro por aqui. Alguém dirá que são apenas
fragmentos da obra e que estou sendo duro e que, afinal, cada um é livre para
publicar o que desejar e ser feliz. Pode ser. Não é disso que se trata.
Porque a questão não é essa. Não se trata de fulanizar. Não tenho problema
com o autor, pessoa física. O que é importante, nisso, é o simbólico. Como
era no caso do silicone. Como é no caso dos macetes e decorebas e nas
questões dos concursos quiz shows que vitimam pobres almas nos
concursos país a fora. Eu não ataco o jogador. Eu ataco o jogo. E é o jogo
que importa.
O problema fulcral, portanto, é o simbólico.
Isto porque o problema não é “essa” obra específica, que viralizou nas redes
sociais. Não. Do mesmo modo que o problema não é “aquele ou aquela”
professor(a). O problema não é “o” silicone e a PEC. O problema reside no
seguinte: o que isso tudo representa no imaginário jurídico. Cornelius
Castoriadis, em sua Instituição Imaginária da Sociedade, dizia: o
gesto do carrasco, ao cortar a cabeça do condenado, é real por excelência
e... simbólico por excelência. Vale mais pelo que representa. As
coisas valem mais pelo que simbolizam, pelo que representam. Mais do que o
ruído, fica o eco.
Isto é, o livro do juiz e os demais livros
“tipo” resumos e similares representam algo muito mais. Esse “muito mais” que
a comunidade jurídica não sabe medir. Só que as consequências (que “vêm
sempre depois”, como dizia o personagem de Eça) estão aí, na nossa cara. E é
nesse “muito mais” que reside o ponto fundamental. Pois é. De há muito é que
chove na serra. A enxurrada vem descendo... Nós é que não nos damos conta,
como diz Zepeda.
Afinal, o que é um livro? O que é doutrina?
Por que alguém escreve um livro? Por diletantismo? Não há responsabilidade
cientifica daquele que escreve ou compila artigos de lei? O professor, ao
fazer macetes e decorebas, tem ou não tem responsabilidade social? É uma
autossabotagem direcionada aos fundamentos da própria docência. E sabotar a
docência é sabotar o ensino que é sabotar o conhecimento.
Ninguém é filho de chocadeira. Em algum lugar
está o paciente zero da pandemia jurídica. O que as faculdades de Direito
estão fazendo? E o que os concursos estão indagando?
Quando Warat falava em próteses para
fantasmas, sempre era difícil explicar o que ele queria dizer. Pois coisas
como essas explicam, de algum modo, o que é isto — próteses para fantasmas.
Warat deu o conceito para a coisa que deu o direito brasileiro.
Por que a simplificação atrai tanto? Por que
ela seduz tanto? Por que o fascínio pelo simplificado, pelo coaching,
pela autoajuda jurídica? Os livros mais vendidos na área jurídica são aqueles
que facilitam e resumem. Prê-à-porter, prêt-à-penser jurídicos. Basta
ver a lista dos best sellers. Na era do anti-intelectualismo, o
terraplanismo jurídico avança dia a dia. O senso comum teórico dos juristas
nunca esteve tão forte. E ele se alimenta do Know Nothing (saber
nenhum), como denunciou MacIntyre, no seu After Virtue.
De fato, há de tudo: “Seja f... em direito constitucional”
(o problema, de novo, não “o” livro; o problema está na pergunta em aberto:
“Como isso é possível”?), Sushi Jurídico, Direito Mastigado,
Resumão dos Resumos, etc. De novo: a questão é o simbólico. Como chegamos
a este ponto? Há até mesmo um livro, sobre o qual falarei oportunamente, que
pretende abarcar todo — sim, todo — o curso de Direito. Em 300 páginas. Deve
ser um combo. Ou um produto milagroso. Ou... bom. Paro por aqui. Agora sim,
paro por aqui. Se há quem siga cavando quando o buraco já é fundo, eu não.
Um país se constrói com homens (e mulheres) e
livros. Será? Livros a mancheias? Onde?
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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
200206 - Jurista Lenio Streck
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