quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

200227 - Jurista Lenio Streck

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Sentença antes das alegações. Por que o direito morre? Descubra




































Lá em 2014, André Karam Trindade e eu denunciamos aqui que uma juíza revogou a lei da Física e presidiu duas audiências ao mesmo tempo. Na sequência, escrevemos, ainda sobre o mesmo tema, “Kill the lawyers: para que contraditório se já formei o convencimento mesmo?”E nada aconteceu. O causídico impetrou HC. E... adivinhem. A resposta veio em francês: pas de nullitésansgrief (não há nulidade sem prejuízo, como se o prejuízo já não fosse decorrente da própria violação do devido processo legal, da imparcialidade, das garantias, da dignidade e de mais um conjunto de preceitos e princípios violados).
Agora, um novo caso (descoberto — fora os que não são detectados) em São Paulo mostra como morre o direito, parodiando o livro “Como As Democracias Morrem” (Steven Levitsky). Aos poucos. À mingua.
ConJur relata que antes de a advogada terminar sua sustentação, a sentença já estava publicada (ver aqui). Denuncio o desrespeito aos advogados quase que todas as semanas. Afinal, de onde surgiu esse imaginário senso comum-dogmático de que direito é apenas dois litigando e um decidindo ao modo como este quer?
Para alguém decidir antes de ouvir as partes ou uma delas, o solipsismo parece ser a resposta óbvia. E o que é esse solipsismo? Simples: algo como "não há nada que me convença do contrário daquilo que já decidi". Ou "quando iniciou o processo eu já tinha minha decisão pronta. Logo, para quê ficar ouvindo alegações?" Ou não é assim?
Vida dura. Dura vida de advogado. Com essa pandemia jurídica, agora mesmo estou tentando discutir o papel do Ministério Público, a partir do projeto (aquiaquiaquiaqui, aquiaqui —  inclui comentários de juristas) do senador Antonio Anastasia (PSD-MG) que foi inspirado em artigo meu aqui da ConJur. E tenho dificuldade em convencer até mesmo uma parte da dogmática processual, a mais garantista [1]. Imaginem a outra... O mérito do projeto? Talvez o fato de estar recebendo críticas dos dois lados. Deve ter algo de bom.
Nessa dura vida, minha procura é pelo paciente zero da pandemia. De novo: por que temos de sofrer todos os dias essa carga de autoritarismos e desrespeitos ao devido processo legal? Por que temos de suportar propaganda de advogado fazendo meme, desembargadora fazendo proselitismo político em Turma do TRT, "direito" ensinado por música, desrespeito ao artigo 489 do CPC, jurisprudência sufragando jurisprudência defensiva como se o processo fosse um obstáculo? Por quê? E até quando? Mas, tout vás trésbien, Madame La Marquise (quem quiser saber sobre o livro "Paris, a Festa Continuou", leia aqui).
Enquanto isso, por aqui, fazemos uma transgenia jurídica. Ou um ornitorrinco dogmático. Não é uma coisa nem outra. Por aqui, definitivamente, o Direito virou, mesmo, aquilo que o Judiciário diz que é. Afinal, se a doutrina permite isso, é porque nos acostumamos com isso.
Como o Direito morre? Do mesmo modo que as democracias morrem. Isso tudo foi indo, foi indo. Antigamente era a velha dogmática prêt-à-porter. Luis Alberto Warat já havia sacado isso. Manuais simplificadores e que detinham o monopólio do ensino. Alguns caricatos (os bons eram e continuam raros). E a comunidade jurídica foi se acostumando. As democracias morrem porque os democratas permitem. Como bem disse o Reinaldo Azevedo dia desses, os democratas pecam por omissão ou ilusão nefelibata. Costumam ser tolerantes com quem sabota o regime na crença ingênua de que, mais dia, menos dia, a civilização vence a barbárie. Morrem com o clichê na mão.
Pois parece que os juristas estamos morrendo com o clichê na mão. A parte sofisticada do Direito foi fazendo vistas grossas à ala que foi transformando o Direito em uma mera racionalidade instrumental. Em suma, o nefelibatismo venceu. Vejo cartazes e outdoors de um procurador da "lava jato" vendendo palestra-show. Espetáculo. Tudo em nome da democracia e da tolerância. E eles avançam. E permitimos que um procurador da República poste no Twitter a frase que depois o presidente da República usou contra a jornalista Patrícia Campos Mello (a coisa do "furo"). Mas tudo bem. Somos democratas. Tolerância, não é?
Peca-se por vários motivos. Alegações finais são postadas no sistema e três ou quatro minutos depois lá está a sentença pronta. E nada acontece. Sentença antes das alegações e, se alguém alegar prejuízo, a decisão dos tribunais será em francês: pas de nullitésansgrief. Parcialidade não é causa de nulidade, porque pas denullité.... Desrespeitar o artigo 212 do CPP é nulidade relativa (e o fundamento vem em francês).
Como as democracias morrem? Como morre o Direito? Simples. Morrem porque se deixa que morram. Não colocamos um basta. Não cumprimos nosso papel. A doutrina não doutrina.
Não é possível que uma sentença seja proferida antes de o advogado terminar seu trabalho. E mesmo que seja postada (hoje as decisões são postadas no "sistema"), ainda assim fica a pergunta: mas o juiz não tem de refletir sobre a prova? Se ele dispensou a palavra do pobre causídico, então é porque ele tinha pré-julgado. Logo, se tinha pré-julgado, não foi imparcial. Simples assim.
Continuemos assim e veremos o Direito morrer. Direito como mera instrumentalidade — é assim que o direito é visto pelo realismo retrô brasileiro — serve para qualquer coisa.
Daí a desembargadora faz aquilo; a juíza aqueloutro; o advogado é destratado; decisões omissas, contraditórias ou obscuras podem ser embargadas... só que não. Afinal, existe o livre convencimento e o juiz não está obrigado a examinar todos os argumentos, se já estiver convencido — embora o CPC determine o contrário. E pas de nullité. Difícil, não?
E a juíza tem a sentença pronta, mas, bem, é assim que é, não é mesmo? Como morrem as democracias? Como morre o Direito? Cada um sabe. Só não quer admitir. E nem dizer.
Post scriptum: a morte de um Amigo
A coluna já fora enviada quando soube da morte de meu ex-aluno e orientado de Doutorado Thiago Fabres de Carvalho. Criminalista de mão cheia, inteligente, crítico. Morava em Vitória (ES). Garantista da cepa. Quarenta e três anos. Deixa amigos como Juarez Tavares, Alexandre Morais da Rosa, Aury, Rodrigo Machado, Jeferson Gomes, Jefferson Amadeus, Alberto Sampaio, Antonio Santoro, Nelson Camatta, e tantos outros. E este entristecido escriba. Que coisa. Fazer o que, a não ser prantear? E recordar das coisas boas que passamos juntos.
[1] Marcelo Cattoni e Diogo Bacha (artigo que sairá na ConJur) estão me ajudando a tentar convencer parte dessa comunidade jurídica. Com efeito, a consideração de que o Ministério Público como órgão titular da acusação atue apenas como parte em todas as fases da persecução criminal obedece a uma lógica privatista que não encontra ressonância na estrutura processual-democrática no Brasil. Veja-se que, caso adotada, não existiria os princípios da obrigatoriedade, indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal pública. Poderia, então, a parte dispor da ação penal. Evidentemente, eis aí um ponto importante que ilumina o projeto: embora titular da ação penal, o Ministério Público não é titular do direito material.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

200220 - Jurista Lenio Streck

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O cara da TV Record, o fracasso do Direito e o mundo do espetáculo




































1. O fracasso da civilização
Li e vi o “espetáculo” que o jovem rapaz apresentador da TV Record (ver aqui) fez ao vivo. Quem tiver estômago, veja. A notícia é autoexplicativa. Em nome do “ibope” e da espetacularização, informou ao vivo, com fones no ouvido e tudo, que a filha da senhora havia sido assassinada. Sim, ele fez isso.
Acabou. Vamos devolver a chave. A luz se apaga. E o que dizer do lamentável episódio envolvendo a premiada jornalista Patrícia Campos Mello, execrada, injuriada e difamada — primeiro, por um anônimo, e depois, pelo presidente da República — à luz dos holofotes e sob os aplausos de claques que compõem esse simulacro todo? Disse-se o que se disse — foi absolutamente cruel a insinuação sexual — e, no parlamento, alguns deputados apoiaram a difamação. Fracassamos ou não? Até Sardenberg, da GloboNews e CBN, sempre defensor do establishment, diz que houve quebra de decoro. Até tu, Sardenberg?
2. O consumidor de ilusões e as ilusões do consumidor: o fracasso como meta
É claro que isso tudo tem explicação. Vejamos. Já em 1967, o francês Guy Debord escreveu La Societé du Spectacule (A sociedade do espetáculo), antecipando as mazelas da fragmentação da cultura ocorrida nestas últimas duas décadas. Como bem lembra Vargas Llosa — que, de certo modo, “revisita” a temática 45 anos depois, em seu La Civilización del Espetáculo —, Debord qualifica de espetáculo o que Marx chamou de alienação decorrente do fetichismo da mercadoria.
É quando o indivíduo se “coisifica”, entregando-se sistematicamente ao consumo de objetos, muitas vezes inúteis e supérfluos. Na proposição 212 de seu livro, Debord chama de espetáculo a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna.
Debord dizia que, na sociedade do espetáculo, a vida deixa de ser vivida para ser representada, vivendo-se “por procuração”, como os atores da vida fingida que encarnam uma peça: “O consumidor real se torna um consumidor de ilusões”.
Llosa produz um livro em que denuncia a vulgarização da cultura, repetindo algo que T. S. Eliot já dizia, ou seja, que a cultura está a ponto de desaparecer; na verdade, talvez já tenha desaparecido. Eu acrescento: os néscios venceram.
Llosa chama de “civilização do espetáculo” ou de um mundo em que o primeiro lugar na tábua de valores vigente é ocupado pelo entretenimento e em que se divertir, fugir do aborrecimento, é a paixão universal. Eis o “cara” da Record. Eis... vejamos a seguir.
3. O novo lumpesinato cultural – perdeu, Direito.
Llosa critica fortemente aquilo que chama de “literatura light”, que propaga o conformismo, a complacência e a autossatisfação. Na mosca.
Diz também — isso em uma entrevista — que a internet democratizou a informação, mas não a cultura. Mas essa informação, se não há uma cultura que discrimine, pode também naturalizar completamente a informação, porque o excesso de informação pode ser um excesso de confusão. Por isso, a cultura é muito importante, pois permite distinguir o que é relevante do que não é relevante. E isso parece estar perdido. Vejam-se as falas de integrantes do governo, como Paulo Guedes sobre o dólar e as empregadas domésticas, alegoria pequeno-gnosiológica com ares de “manual para néscios”.
Aí está. As denúncias de Debord e Llosa cabem como uma luva ao que se pratica no Brasil em termos de jornalismo, ensino e práticas jurídicas.
Trata-se da fabricação cotidiana de “lumpens pós-modernos”. Esse “indivíduo” fruto desse processo não reivindica. Não luta. Apenas reproduz. O que ele faz é alienar-a-sua-ação-ao-outro. Trata-se do novo homem, o que substitui o homo sapiens: É o homo simplifier ou o homo facilitator.
Juristas, estagiários, publicitários, jornalistas e jornaleiros... Ninguém está livre desse novo homem. Tenho denunciado essa gente há muitos anos. Ainda há dias vi, nas redes (sempre “as redes”) um “comercial” de um advogado, acho que de Minas, em que ele “se exibe”, como se fora personagem de um filme policial. Vai até a favela e diz: nós levamos o caso daqui até Brasília. Que coisa, não?
Outros “ensinam” Direito por memes e macetes. Cantam. Dançam. Desafinam. Comparam emendas constitucionais a silicone. Pensam que, para escrever livros, basta pagar e juntar letrinhas. E quejandar. Pois é. Livros? Constituição? Boa dogmática? Filosofia no Direito, então? Nada disso.
Como já falei, meu problema não é com o jogador. É com o jogo. Simplifique a coisa a tal ponto que a coisa já não é mais a coisa. É reduzida a um simulacro. É nisso que fracassa o Direito.
Tudo o que está acontecendo veio de algum lugar. Não há grau zero. Jabuti não nasce em árvore. Plantou-se transgênicos. Abriram a fábrica de próteses. Para fantasmas. Por isso se prende gente por R$ 5. Por isso se algema maneta. Por isso “não se conhece” de milhares de recursos e falamos tanto de precedentes. E ousar fazer embargos dá multa. Está preocupado com a enchente? Pois de há muito começou a chover na serra.
Sim, fracassamos. O rapaz da Record apenas é um símbolo que apagou a luz. Um simulacro. Ou seria uma simulação de tudo o que está aí?
4. Nada está tão ruim que não possa piorar (?)
Outro dia li dicas sobre filosofia do Direito. Uma dica foi esta: “o positivismo jurídico tem como ápice a doutrina de Hans Kelsen que visa demonstrar uma fórmula de aplicação do Direito que pura e simplesmente declare a vontade do legislador sem criar nada novo, reduzindo o seu conteúdo às leis escritas" (sic). Esse deve ser o Kelsen quem escreveu, em lugar da Teoria Pura do Direito, a Teoria do Direito Puro, se me entendem a ironia. Na medicina seria algo como “tanto faz o tipo de sangue para fazer transfusão; basta que seja sangue”. Ou “tanto faz usar antibiótico ou chazinho de ervas — dá tudo no mesmo”.
Pronto. Como é mesmo o nome do rapaz da Record? E daquele que ensina o ECA cantando? E o que canta ensinando o que é estupro (já ouviram a letra)?
E os alunos? Bem, são os que se transformam depois em advogados, defensores, procuradores, juízes. E professores. Bom, eis aí o resultado. E está estabelecido o círculo vicioso (que não é um ciclo. É círculo, mesmo. Antes fosse só um ciclo. Talvez tivesse perspectiva de chegar ao final).
homo sapiens perdeu, playboy. Já temos o novo homo. O facilitador. O homo zapiador (homozapiens). O homo boquirotus. O homo nescius. O homo ridiculum, enfim, ille qui superbus est stultitiam suam — o homem que se orgulha de sua própria estultice.
Como diz João Pereira Coutinho, fazendo uma crítica ao filme Jojo Rabbit, é bobagem pensar que os alemães teriam resistido a Hitler se tivessem conhecido melhor o outro, o inimigo judeu. Isso é simpático, diz Coutinho, mas falso. Como ensina o filme Uma Vida Oculta, de Terrence Malick, essa resistência teria sido mais eficaz se os alemães conhecessem melhor...a eles próprios. Eis aí um bom recado para a comunidade jurídica. E para o país.
Tenho visto tantas coisas nestes últimos tempos que dou completa razão a Malick. Ou à leitura feita de Malick.
Os maiores inimigos dos juristas são eles mesmos. O Direito ajudou a destruir o país e, quem foi o responsável? A comunidade jurídica jura, de pé junto, que não tem nada a ver com isso.
Os alemães também não tiveram nada a ver com o nazismo... Pois é.