Prescrição:
Quem é o guardião da lei ordinária?
STJ ou STF?
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Abstract: pode o STF fixar
tese vinculante em matéria infraconstitucional?
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Discutirei hoje um assunto novo. O Supremo
Tribunal Federal decidiu no dia 5 de fevereiro que
“Nos
termos do inciso IV do artigo 117 do Código Penal, o acórdão condenatório
sempre interrompe a prescrição, inclusive quando confirmatório da sentença de
primeiro grau, seja mantendo, reduzindo ou aumentando a pena anteriormente
imposta."
Já há sete votos a favor da tese. Foram
dissidentes os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
O ministro Dias Toffoli pediu vista e o decano
estava ausente. Aqui pretendo -doutrinariamente- mostrar que os votos
majoritários desbordam do conceito de jurisdição constitucional. Não vou
discutir o mérito. Apenas adianto, acompanhado da melhor doutrina, que o STF
não fez a melhor interpretação do inciso IV do artigo 117 do CP. Afinal,
a boa tradição do direito já significou o conceito de “acórdão condenatório”.
O que interessa, mesmo, é a seguinte
questão: pode o STF definir "enunciado de tese" em
julgamento de Habeas Corpus em que não há nenhuma matéria constitucional em discussão? [1]
O Supremo Tribunal tem competência
constitucional para se manifestar sobre a legislação ordinária nos casos de Recurso
Extraordinário sobre validade da lei local contestada em face de lei
federal. No caso específico do HC -e este é o ponto- o STF tem, é claro,
competência para julgar o writ, uma vez que julga habeas corpus
que tem como coator o Superior Tribunal de Justiça.
Contudo -e aqui começa o problema- uma coisa é
julgar o habeas corpus. Já outra é criar tese em um julgamento como esse.
Quero mostrar que o STF não pode criar uma tese que viola competências
constitucionais (de uniformização de jurisprudência federal).
Em 2014, o STJ decidiu que os condenados na
Ação Penal 470, o processo do mensalão, presos em regime
semiaberto não
precisariam cumprir 1/6 da pena para terem
direito a trabalhar fora da prisão. O que fez o Supremo? Seguiu o que o STJ
decidira. Eu falei (ver aqui),
à época, que o STF simplesmente fez -corretamente- o que deveria: seguiu a
jurisprudência do STJ (ver também André Karam Trindade, que escreveu sobre
isso). Não havendo questão constitucional, STF deve seguir o que disse o
STJ. Isso causa estranheza, certo? Vejamos.
No caso da prescrição, no modo como
foi discutida, não havia matéria constitucional envolvida. Mas, então,
por que o STF alterou o sentido de lei ordinária? Sim, sei que havia, em
jogo, o direito de ir e vir (liberdade), ou duração razoável do processo.
Correto. Em HC, sempre há. Porém, lembro que no caso do regime semiaberto, de
2014, igualmente estava em jogo a liberdade e o direito ao trabalho.
E nem por isso o STF alterou o entendimento do STJ.
Pelo nosso sistema constitucional, quem diz o
sentido da lei ordinária é o STJ. Se a decisão do STJ ferir a Constituição, o
STF entra em campo. No caso da prescrição, o STF deveria dizer se havia
coação ou não. A 6ª Turma do STJ errara? Ou errara, antes, a 1ª Turma do
STF que entendera que o acórdão condenatório sempre interrompe a
prescrição? Quem primeiro alterou o entendimento sobre a matéria foi a
1ª Turma do STF, que alterou entendimento do STJ, porém sem
invocar matéria constitucional. Portanto, quem errou na sequência foi o STJ,
ao seguir entendimento que alterou sua própria posição -dele, STJ- por
causa do que disse a 1ª Turma do STF (o STJ renunciou a sua competência
institucional). O assunto, no STF, face às discrepâncias, foi ao Plenário.
Traduzindo, o que de fato ocorreu foi que o
STF deu nova interpretação a uma matéria infraconstitucional consolidada no
STJ. E transformou uma simples questão ordinária em matéria
constitucional, sem que tivesse uma “questão constitucional”.
Eis a questão. A vingar a tese proposta no
julgamento, tudo pode ser questionado no STF. Sim, o habeas corpus é remédio
constitucional. Mas isso não transforma qualquer matéria por ele ventilada em
uma “questão constitucional”. Ou estou equivocado?
O artigo 117, IV, cujo sentido, até essa
recente virada de entendimento, tinha o apoio da doutrina (quem dá bola para
doutrina?) e do próprio STJ e do STF (até o dia em que alterou o entendimento
sobre a matéria), não tem mácula constitucional. Aliás, nem o STF
disse que tinha matéria constitucional (sobre “matéria
constitucional”, embora tratasse de matéria de recursos e não de HC, vale a
pena ler o acórdão AI 162.245 AgR do STF).
É verdade que sempre haverá fumaça
constitucional nos atos normativos infraconstitucionais. Porém, disso não se
extrai que se pode abrir as portas da Corte Constitucional para que se
interprete legislação de cunho infraconstitucional, nos casos em que a
questão constitucional -senão inexistente- é, no máximo,
reflexa. Aliás, o STF não admite considerar questões em que
a constitucionalidade aparece como meramente reflexa (tema 660). É disso que
se trata, aqui. Não estou vinculado ao mérito sobre prescrição. Discuto
jurisdição. E questiono a panjurisdição constitucional.
Por isso, temos de ir mais fundo. Há um
precedente (ao que vi, nunca seguido pelo próprio STF), cujo voto condutor é
da lavra do ministro Gilmar Mendes (RE 638.116-CE), no qual o tribunal
considerou que o conceito de “questão constitucional” deveria ser ampliado.
Na ocasião, discutiu-se se a interpretação de lei (sobre vantagens de
“quintos” incorporados) poderia ser matéria de RE. Era questão de
interpretação de lei ou matéria constitucional? O procurador-geral
da República deu parecer dizendo que matéria infraconstitucional não
enseja RE.
Mas o STF deu provimento ao RE com fundamento
de que a interpretação do STJ ao dispositivo de lei ordinária estava
equivocada. Em resumo, para o STF, ao interpretar erroneamente uma lei
ordinária, o STJ, naquele caso, contrariou a ordem constitucional.
O voto do ministro Gilmar, acompanhado pela
maioria (vencidos Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello) é muito bem
fundamentado na doutrina alemã: “Uma decisão judicial que, sem fundamento
legal, afete situação individual, revela-se igualmente contrária à ordem
constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffanggrundrecht)
(Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, Munique, 1985, p.
108). Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os
direitos fundamentais vinculam todos os poderes e que a decisão judicial deve
observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a
decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito
individual específico, pelo menos o princípio da legalidade”. (grifei)
Correto. Nada a acrescentar.
Todavia, o próprio ministro traz, com
Schlaich, a -também correta- ressalva: “Se se admitisse que toda decisão
contrária ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de
acolher, igualmente, todo e qualquer recurso constitucional interposto contra
decisão judicial ilegal”.
Prestemos, pois, muita atenção a essa ressalva
acima!
Sigo. Diz o ministro Gilmar, “enquanto essa
orientação prevalece em relação a leis inconstitucionais, não se
adota o mesmo entendimento no que concerne às decisões judiciais. Por
essas razões, procura o tribunal formular um critério que limita a impugnação
das decisões judiciais mediante recurso constitucional”.
Observemos o que disse o ministro: “exige-se
um critério”!
Segue Gilmar:
“Sua
admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na
interpretação e aplicação do direito, o juiz desconsiderou por completo ou
essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se
revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do
direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção
jurisprudencial (Cf., sobre o assunto, Schlaich, op.cit). Não raras
vezes, observa a Corte Constitucional que determinada decisão judicial
afigura-se insustentável, porque assente numa interpretação objetivamente
arbitrária da norma legal [BverfGE 64, 389 (394)]”.
Aqui, o critério é claro:
“a
interpretação da lei infra deve ser objetivamente arbitrária”.
Assim, complementa o ministro, “a ideia de que
a não observância do direito ordinário pode configurar uma afronta ao próprio
direito constitucional tem aplicação também entre nós”.
Correto. Nenhum tribunal, incluso o STJ, pode
fazer interpretação arbitrária.
Por quê? O ministro Gilmar explica: “a
decisão ou ato sem fundamento legal ou contrário ao direito ordinário viola,
dessa forma, o princípio da legalidade. No caso, a decisão judicial que
determina a incorporação dos quintos carece de fundamento legal e, portanto,
viola o princípio da legalidade”. E foi o que decidiu o STF naquele dia.
Observemos. Levando em conta os fundamentos
determinantes, na verdade, teríamos que o STF decidiu que “todas as vezes
em que uma decisão do STJ for afrontosa à legalidade, exsurge disso uma
questão constitucional, representada pela afronta ao princípio da legalidade”.
Aplicou, pois, o critério da exigência da interpretação objetivamente
arbitrária (que, se eu fosse definir, diria ser o contrário do que
se chamou, na famosa súmula 400, de “interpretação razoável”, conforme
explico em Verdade e Consenso).
Recordemos, de novo, a exigência do critério.
Não é qualquer decisão do STJ ou de outro tribunal, em matéria ordinária, que
dá ensejo à intervenção do STF. Veja-se que o tribunal alemão fala em interpretação
objetivamente arbitrária (objektiv willkürlicher Auslegung der
angewenderen Norm)”. Isto ocorre quando for ferido o princípio da
legalidade inscrito na Constituição. Todavia — e esse é o ponto — parece
claro que isso não se aplica a uma interpretação que a doutrina
majoritariamente diz que é correta em relação à prescrição.
A posição do STF, no caso da prescrição
— e em qualquer outra similar — somente seria aceitável de tivesse
estabelecido, antes, qual era a questão constitucional em
jogo. Como fez, aliás, o ministro Gilmar no precedente do caso dos
“quintos”. Mutatis, mutandis, no caso dos “quintos”, o STF
considerou, nos fundamentos determinantes, que a interpretação do STJ era
objetivamente equivocada.
Na realidade, definir se o STF pode fixar tese
vinculante em julgamento de HC sem uma questão constitucional em jogo perpassa
diversos problemas teóricos além dos já apontados neste texto, em especial,
se toda decisão do plenário do STF deve ser dotada de efeito
vinculante, inclusive em HC.
Essa discussão foi significativa na ocasião da
Rcl 4.335; contudo, houve promulgação da Súmula Vinculante 26 eliminando a
divergência. E ali havia nítida matéria constitucional. Ocorre que no
julgamento do HC 127.900 (interrogatório é o último ato da instrução penal na
Justiça militar), o STF fixou tese vinculante no bojo do próprio HC.
Examinando o tema, Georges Abboud, de forma percuciente, alertou para os
riscos desse posicionamento, uma vez que, além de fixar sua tese, o STF
estabeleceu que seu entendimento seria vinculante devendo ser estendido ao
processo eleitoral e a todos os procedimentos penais especiais.
Porém, naquele caso, do ponto de vista
constitucional, havia claramente presente a questão da garantia da ampla
defesa e do devido processo legal. Todavia, pergunta Abboud, o STF irá
conhecer reclamações de decisões contrárias ao que ele estabeleceu no HC
127.900? Não tenho notícias de casos que tais. Mais: todos os HCs decididos
pelo Plenário do STF terão o mesmo efeito vinculante? Esse efeito vinculante
se estende a todos os julgados do Plenário que apreciarem algum writ constitucional?
[2]
Aqui um ponto: ao menos no HC 127.900 o habeas
corpus garantiu direitos; no caso da prescrição, restringiu direitos, o
que nos obriga a exigir do STF respostas às indagações de Abboud [3] para buscarmos o mínimo de integridade jurídica.
Por quê? Porque tese significa efeito
vinculante. Só que isso pode fragilizar ou anular a sistemática da Súmula
Vinculante. Ou seja, em vez de observar todos os requisitos da SV, o STF
criaria teses vinculantes sem os requisitos daquela.[4]
Despiciendo lembrar que o problema, neste
caso, é agravado porque o habeas serve para buscar liberdade
e direitos. E não o contrário. Além do mais, prescrição é matéria que sempre
é limite ao poder estatal. Uma decisão jurisprudencial não pode contrariar
toda a principiologia que sustenta a legislação (diga-se, amparada pela
Constituição Federal). Pode uma interpretação extensiva de lei ordinária
feita pelo STF fazer retroceder uma garantia fundamental-individual?
Estas reflexões buscam um debate sobre o papel
dos tribunais. Um debate prático-doutrinário. E também sobre o papel do habeas
corpus, antes que o transformemos em instrumento de contra garantia. Não
esqueçamos que foi em sede de HC que foi retirada a garantia da presunção da
inocência em 2016.
Claro que o STF pode fazer interpretação de
lei ordinária. O ministro Gilmar demonstrou bem isso. Mas será que isso se
aplica em qualquer caso, especialmente em sede de HC, sem que haja
interpretação arbitrária do STJ? E nos casos de mandado de segurança? Sem uma
“questão constitucional”?
Claramente há condicionantes
institucionais que limitam o exercício da atividade interpretativa,
inclusive, a do STF. Pois se ao STF for permitido se pronunciar por
último também sobre a lei federal (sempre), estaríamos então como que diante
de uma espécie de poder de dicta. Sempre que provocado, o Soberano
pode reivindicar o seu poder de dicta para afirmar sua
interpretação soberana da lei?
Se tudo é constitucional, nada mais é. Porque
isso abre uma caixa de pandora que fragiliza a função autêntica da Suprema
Corte: e a de guardiã da Constituição.
Se me perguntarem, e voltarei a isso em outro
texto, parto sempre de uma perspectiva das garantias. Por isso, no mérito,
fico com Lewandowski e Gilmar.
Numa palavra convidativa para o debate: só
quando existir uma interpretação objetivamente arbitrária do STJ é que o STF
pode redefinir ou fixar interpretação (tese) em caso de HC. No mais, tem de
apenas julgar o writ a partir do sentido fixado na
jurisprudência do STJ.
Ou seja, somente no caso de uma arbitrariedade
interpretativa é que o STF poderá transformá-la em uma questão constitucional
por violação do artigo que trata da legalidade na Constituição Federal. São
as condicionantes institucionais.
Lembrete final: Antes que alguém diga “— mas,
no caso, o STF apenas confirmou uma decisão do STJ que negara o HC”, lembro
que o STJ negou o HC porque a 1ª Turma do STF construiu essa nova tese à qual
a 6ª Turma do STJ aderiu e da qual, em consequência, a Defensoria interpôs HC.
Simples assim.
Em termos sistêmicos, vingando a tese do STF,
a partir de agora, qualquer matéria decidida pelo STJ poderá ser alterada
pelo STF, mesmo que não contenha uma “questão constitucional”. E todos
correrão ao STF. O STJ será rito de passagem. A ver se vale o risco.
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[1] Agradeço ao parceiro Marcio Paixão, brilhante advogado gaúcho,
quem me instigou a escrever sobre o assunto.
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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
200213 - Jurista Lenio Streck
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