Escrevi há dias mostrando que o juiz de garantias é “bem constitucional” (ler aqui), dizendo, inclusive, que há um fenômeno novo
no direito brasileiro: o neoinconstitucionalismo. Se com o
neoconstitucionalismo tudo virava “coisa constitucionalizada” e
“pamprincipiológica”, agora, porque interessa a alguns setores, tudo se
transforma em inconstitucionalidade. É o caso do juiz de garantias.
Diz-se que o JG é uma “questão de competência”
e que fere o juiz natural. Logo, não poderia ser criado como foi. Ora, digo
eu, trata-se apenas de mais uma função que um juiz deve assumir. Assim como
tem o juiz do júri, terá o JG. Ou alguém pensou que o JG seria algo novo, que
exigiria um (estranho) concurso público específico?
Como bem reclama Jacinto Coutinho, de competência se sabe pouco no Brasil. E de
competência funcional menos ainda. E isso é falta de se saber o que é o juiz
natural. Dizendo de novo: não se criou, com o JG, nada de competência com
ele. Por sinal, a doutrina e os professores com algum estudo sempre falaram
de competência funcional em face do objeto do juízo (Figueiredo Dias, por exemplo).
Portanto, creio que o assunto juiz de garantias está bem encaminhado. Já há grupos
expressivos de juízes e tribunais apoiando a medida. Penso que o Supremo Tribunal não terá maiores dificuldades em atingir uma
boa maioria e rejeitar a ADI da AMB.
Mientras, ocorreu o episódio “Porta dos Fundos”. O desembargador do Rio de Janeiro achou que poderia
ditar o que seria bom ou ruim para a moral dos brasileiros. Inclusive,
segundo disse, deu a liminar suspendendo a veiculação do filme para “acalmar
os ânimos”. Pois o que ele conseguiu foi uma saraivada de críticas.
Sim, porque sua decisão foi uma
autêntica katchanga real. Tirou um argumento da manga do colete e fez
como o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho: deu à Constituição o sentido que quis. No livro de Lewis Carrol, o
personagem diz que Alice poderia ter 364 desaniversários em vez de um.
Contestado, respondeu: pode sim, porque eu dou às palavras o sentido
que quero. Eis, esculpido em carrara, o caso Porta dos Fundos. Nada mais há a dizer.
Por outro lado, o juiz federal encarregado de
apreciar a denúncia oferecida pelo MPF contra o presidente da OAB,
Felipe Santa Cruz, com pedido de afastamento, rejeitou-a.
Olimpicamente. O ministro Sérgio Moro não gostou da decisão. Disse esperar que o Ministério Público recorra.
Fê-lo como se fosse chefe da instituição, situação bem-apanhada pela defesa
de Santa Cruz, advogado Kakay, quem divulgou nota
alertando para essa conjuminância de sedizente vítima com a de ministro da
justiça de todos os brasileiros.
Ao mesmo tempo, há episódios de duas juízas
que protagonizaram coisas que parecem querer inaugurar a nova lei do abuso de
autoridade: uma, de Minas, esculachou o advogado (aqui); outra, no DF, foi mais longe e prendeu o causídico (ler aqui).
Também um juiz de Minas Gerais mostrou
descontentamento com a nova lei do abuso, citando Cowboy fora da lei (aqui). Bom, com essa doutrina facilitada e resumida que
campeia, Raulzito
até dá de dez. Embora a citação esteja na contramão do pensamento do autor.
Sem esquecer que uma juíza do Rio de Janeiro
pediu interprete da antiga URSS em um
processo. Por causa da língua russa. Entenderam? Não há, mesmo, tédio
no Brasil.
E leio que a música We Are the World vira
clássico no direito. Não sei por qual razão, mas virou. Talvez porque
facilita o coral (ler aqui). Veja-se que até nisso os juristas são
bregas. E com pouca sofisticação musical. Um hermeneuta não elegeria essa
música e nem aconselharia fazer coral.
E ainda por cima um deputado quer acabar com a
coisa julgada. Como onomaturgo pós-moderno, leu o que três professores de direito escreveram e creu. O
próximo projeto é proibir enchentes.
Como falei, de tédio ninguém morre no Brasil.
O Senador Lasier Martins, junto com o senador Anastasia, propõem uma PEC
pela qual a nomeação de ministros do Supremo Tribunal seja modificada, assim
como termina com a vitaliciedade. O mandato será de 10 anos. E será feita uma
comissão composta pelo Presidente do STF, PGR, Presidentes dos TCU,
STJ,
TST,
STM
e OAB.
Eles farão lista tríplice, da qual o Presidente da República escolhe um.
Interessante é que o Sen. Lasier, que não dá bola para cláusula pétrea, admite que é cláusula imodificável a
nomeação de ministro pelo Presidente da República; o senador tem um
conceito seletivo de cláusula pétrea).
Segundo a PEC, para ser ministro, é necessário
ter experiencia de atividade jurídica de 15 anos. Pena, não? Professores de
direito, ao que se vê, ficarão de fora. De novo. A PEC vai piorar o que está
ruim. Será um STF formado por juízes, MP, eventualmente um conselheiro do TCU
e advogados. Provavelmente farão um rodízio. Já fico imaginando o lobbie. E
como será a candidatura? Milhares mandarão curriculum. E o Conselhão terá que
delegar para assessores fazerem a triagem. Não vai ser fácil.
Mas, como a PEC ainda está sendo discutida e
este é um país corporativista, penso que esse colegiado irá aumentar (e
muito), com a inclusão do Defensor
Geral, do Chefe da Polícia, do AGU, dos policiais
civis, dos procuradores dos estados, dos fiscais da receita, da CGU...e vai
ficar bem grande. Pago para ver.
Isso que nem falei das PECs da prisão em segunda instância.
E nem das ADIs
(1) da lei do abuso.
(2)(3)
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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
200116 - Jurista Lenio Streck
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
200109 - Jurista Lenio Streck
O
Saber Nenhum, os textões, as letrinhas...
e a crise do Direito
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A charge acima diz aquilo que
não sei se conseguirei dizer na sequência. É que o chargista Rafael Corrêa, genial, conseguiu roubar a cena. Faz, ao
mesmo tempo, (i) uma crítica arrasadora aos tempos “pós-modernos” das redes sociais, em que textos com mais de dez linhas são rejeitados pela
malta, (ii) arrasa com a cultura pret-à-porter e ao anti-intelectualismo tão bem desenhado e criticado por Alasdair MacIntyre
(After Virtue).
E, claro, (iii) a charge atinge em cheio o que disse o presidente da República
sobre os livros didáticos,
porque teriam muitas letras: um montão de amontado de muita coisa escrita.
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a) O triunfo do Saber Nenhum!
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Não vou querer neste pequeno espaço fazer tese
sobre as razões pelas quais vivemos esta era do anti-intelectualismo ou do Know Nothing (o
Saber Nenhum) da distopia de MacIntyre. Há bons autores que já trata(ra)m
disso. Gosto muito da “pirâmide” (o epíteto
é meu) de T.S. Eliot: informação
não é conhecimento, que não é saber, e que não é sabedoria. Ou, sendo-lhe
mais fiel: Onde está a vida que perdemos no viver? Onde está a
sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos
na informação?
Na Era da (des)Informação em que vivemos,
praticamente todos, com click, têm acesso a um mundo que vem
“dado”, à disposição de qualquer tapado. Mas, então, por que existem tantos néscios
vagando feito Walking dead pelas ruas e faculdades? Simples:
porque é necessário transformar a informação em conhecimento. E, com mais
esforço, vem o saber. E a sabedoria pode ser tudo isso transformado em
vivência. Por isso a “pirâmide” tem a base tão extensa, lotada de gente
(des)informada pelo mundo das redes. Paradoxo: tanta informação e tanta
ignorância.
No Direito, vivemos a era da facilitação,
mastigação, tuitização e resumização de conteúdos. Memes. Macetes. Decorebas.
Burrice virou coisa fashion. Concursos recheados de pegadinhas. E
gente que “ensina” Direito sem qualificação. Repetem informações. Que,
paradoxalmente, os alunos podem pegar... na internet.
Círculo viciosíssimo.
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b) Porque textos com mais de dez linhas são malditos
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Logo, qual é a função do “professor”? Simples:
Fazer um atalho na preguiça dos alunos. Reproduzir, gerando gente como o
estudante chinês, personagem do belo livro
de Bernardo Carvalho, Reprodução. O
livro mostra como todos os absurdos
podem ser ditos e difundidos de maneira irresponsável e sem fonte; todos -
inclusive minha tia - têm uma opinião definitiva sobre qualquer coisa. O
personagem-estudante-chinês é o protótipo do indivíduo-produto deste tempo.
Mas, atenção: o livro Reprodução é cheio de letrinhas.
Textão. Putz. Quem se anima?
Sigo. Aqui mesmo na ConJur textos
longos não são bem-vindos. Comentaristas — a maioria escondidos no anonimato
pós-moderno, leem apenas o título. E odeiam a priori. Mas são
contundentes. E criticam a orelha do texto. Aliás, críticos de orelha se
multiplicam no Direito. Os livros não deveriam ter orelhas. E nem quarta capa
com texto. Vou propor esses cortes. Temos de desfacilitar o trabalho da
malta.
E a coisa piora dia a dia. Basta ver a
declaração do presidente da República. Vamos
colocar mais figurinhas e menos letrinhas nos livros nas escolas.
Ótimo, diz minha tia-que-virou-cientista-política. Maravilha, dizem os
tiozões que passam o dia nas neocarvernas, como terroristas de IA -
Ignorância Artificial. Abaixo o textão, diz o menino com fone de ouvido e
celular na mão. Livros didáticos tem de ter figurinhas e o hino.
Isso.
Nas redes, os ignorantes perderam totalmente o
filtro. Ofendem, xingam..., mas nem conseguem escrever corretamente os
próprios xingamentos. É comum ver néscios separando sujeito e verbo. E, é
claro, odeiam textos com mais de dez linhas. E odeiam coisas sofisticadas.
Eis a comprovação do Know Nothing.
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c) O UBER chegou no Direito — por edital
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E vai piorar mais ainda. Vi, por estes dias,
um edital “institucionalizando” a uberização do Direito. Explico: assim como
o cara que dirige Uber
tem discurso empreendedorista (palavra da moda), agora você pode ser
professor sem sair de casa ou algo assim (lembro do velho Instituto Universal Brasileiro - IUB
- recordar é viver : veja aqui comercial antigo). Pode ser professor sem ser
professor; pode ser professor sem contrato com Faculdade ou Universidade.
Igual ao motorista de Uber sem carro - alugue um. Fala-se em EAD invertido
(sic). Detalhe: Li a notícia e constatei, inclusive, que há a separação do
sujeito e do verbo, verbis: “Todos os candidatos inscritos, terão acesso...
Sim, professor ad hoc. Professor
de aluguel. O professor fica em casa e pode ser chamado por plataforma, como
o motorista do Uber. E já vem o valor que vai receber pela corrida, quer dizer,
aula. Não há prova nem classificação de candidatos. O candidato deve gravar
uma vídeo aula de 5 minutos. Esse é o teste. Para qualquer disciplina.
Que tal o novo empreendedorismo epistêmico? O
tal negócio, que promete um “processo seletivo simplificado” (poxa, até isso
é simplificado!) com edital e tudo (!) diz que “O Futuro é Agora” e que a
educação é “4.0”, promete um cadastro de professores-ubers para “Aulas
Interativas Online”. Não vou eu colocar o link aqui, não pretendo incentivar
a tal educação 4.0. Mais: nestes tempos em que não há mais verdades, e fato e
ficção são a mesma coisa, é até difícil saber se o negócio é verdadeiro.
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Não importa: é mais uma expressão do Geist destes
nossos distópicos tempos de Know Nothing. Como duvidar, afinal,
quando o presidente quer “suavizar” os livros didáticos? Bom, no Direito isso
já foi feito de há muito. Sinopses jurídicas. Com as quais não se faz
sinapse. Resumos. Resumões. E macetes. Que causam vergonha alheia.
Pois é. Meus textos dos anos 90 eram, mesmo,
distópicos. Profetizei. Quando brincava com exemplos tipo Caio e Ticio,
gêmeos xifópagos que brigam à faca, “agressão atual é a que está acontecendo
e iminente é a que está para acontecer”, “coisa móvel alheia é a que não
pertence à pessoa”, “interpretar a lei é retirar tudo o que nela contém”
(lipoaspiração epistêmica) e coisas desse tipo, não pensei que tudo isso
poderia vir a ser “sofisticado”. Sim, porque o Direito, o ensino, tudo parece
ter sido whatsapzado, startupizado.
Qual é o próximo passo? Fahrenheit 451? (Aos
que não entenderam a referência, cuidado: trata-se de... um livro! Um montão
de amontoado de coisa escrita; muitas letras acolheradas - para os
preguiçosos, tem um resuminho no Google - vejam como sou bonzinho: para
facilitar a vida de quem não quer perder tempo lendo, aí vai o site O
Poderoso Resumão, em que fala do Fahrenheit 451 - aqui).
Mas, enfim, penso, já é hora de parar de
escrever e ir para o café. A rubiácea
me espera. Calma. Rosane não mudou de nome. Falo da infusão de rubiácea que,
fumegante, me aguarda.
Sem contar que isso aqui já está virado em um
montão de amontoado de muita coisa escrita. Ups!
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e) Dica final – Onde tudo começou!
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Ao filósofo Voltaire os néscios causavam
horror. Para saber mais sobre néscios e sua origem, recomendo este texto (recheado
de letrinhas): E eles tem a vantagem de não
saber que não sabem.
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