PACTO DE IMPUNIDADE
Se houvesse Justiça de
transição, defensores da ditadura não estariam na vida pública
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Foi incomodado com os rumos de uma
investigação que o presidente Jair Bolsonaro deu um dos sinais mais fortes a
respeito do tom que adotaria enquanto chefe do Executivo. O mandatário queria
que a apuração sobre o atentado a faca sofrido por ele em Juiz de Fora (MG),
em setembro de 2018, envolvesse não apenas Adélio Bispo, o autor do ataque,
mas também o advogado do réu.
A OAB entrou com uma medida de segurança
em favor da defesa de Adélio. Contrariado, Bolsonaro disparou não contra a
entidade, mas contra o seu presidente, Felipe Santa Cruz, filho do militante
da Ação Popular (AP) Fernando Santa Cruz, assassinado em 1974 por agentes da
ditadura militar (1964-1985).
"Um dia se o presidente da OAB quiser
saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele.
Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele", disse, sabendo que
tocaria em um ponto sensível: o paradeiro do corpo de Fernando, como o de
diversas vítimas do regime de exceção, ainda é desconhecido.
A declaração, feita no dia 29 de julho de
2019, gerou reações imediatas. A procuradora
regional da República Eugênia Gonzaga,
então presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
(CEMDP), afirmou, no dia seguinte, que "nunca um presidente da
República, nem mesmo da própria ditadura, ousou atacar uma família de maneira
tão vil". Em 1º de agosto, pouco depois da fala, ela acabou exonerada
pelo presidente, deixando a comissão que chefiava desde 2014.
Em entrevista à ConJur, Gonzaga
afirma que condutas como a de Bolsonaro podem ser explicadas pelo fato de que
o Brasil nunca elucidou os crimes cometidos durante a ditadura.
"Quando falamos sobre Justiça de
Transição [conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas como
reparação das violações de direitos humanos], não estamos falando apenas de
processar os responsáveis pelos assassinatos, mas de elucidar os crimes e dar
uma resposta aos familiares. A Argentina teve agora um governo conservador,
mas ninguém ousou atentar contra a democracia fazendo apologia a
torturadores. Se houvesse Justiça de Transição efetiva no Brasil, Bolsonaro
não teria se tornado presidente. Não teria sido eleito nem deputado",
diz.
De acordo com ela, o Judiciário e os governos
civis tiveram a chance de abordar o tema com maior sensibilidade, mas
acabaram optando, em muitos casos, pela adoção de políticas mais protocolares
do que verdadeiramente eficazes.
A procuradora comentou ainda a atuação de
Marco Vinícius Pereira na Presidência da CEMDP. O advogado filiado ao PSL e
assessor da ministra Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos) já anunciou uma série de mudanças no regimento da comissão.
Criada em 1995 por meio da Lei 9.140,
a CEMDP tem como objetivo primordial localizar e identificar vítimas da
ditadura. A normativa também estabelece um valor indenizatório aos familiares
de mortos e desaparecidos políticos.
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Em janeiro, o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos anunciou um novo regimento interno para a
CEMDP. O que achou da mudança e quais foram as alterações mais sensíveis?
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Para os atuais integrantes, a comissão nem
deveria estar funcionando mais. Basta ver a declaração do atual presidente de
que os trabalhos serão encerrados até o meio deste ano. A mudança mais grave
foi a revogação da Resolução
nº 2, que determina a retificação dos assentos de
óbito dos mortos e desaparecidos políticos.
A comissão também só poderá fazer buscas para
famílias que tenham entrado com a solicitação em um prazo de até 120 dias
desde que a Lei 9.140 entrou em vigor, e nós estamos falando de uma norma que
passou a valer em 1995. É uma posição absolutamente inédita e os familiares
jamais foram orientados sobre isso.
As medidas deixam a comissão em débito com as
famílias. Além disso, contrariam justamente os motivos pelos quais ela foi
criada. Uma coisa é você estipular prazo para indenização, outra é limitar a
mera declaração de que determinada pessoa foi vítima da ditadura. Mas no
entendimento do novo presidente, a comissão esgotou seu papel e ela não irá
mais atuar em nenhuma frente que não tenha sido criada a partir de ordem
judicial.
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Mas o novo presidente pode
simplesmente encerrar a comissão?
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O que o Marco Vinícius pode fazer é dizer que
as investigações já chegaram ao seu limite e que não há mais para onde
prosseguir. A comissão só deveria acabar quando houvesse resposta para cada
um dos casos, quando as apurações puderem indicar quais corpos apareceram,
quais não apareceram e o que foi feito com eles. Nesses casos, até o não é
uma resposta. E por que digo que até o não é uma resposta? Porque na vala de
Perus [vala clandestina encontrada em 1990 no Cemitério Dom Bosco, zona norte
de São Paulo] foi identificado, por exemplo, o corpo do sindicalista
Aluísio Palhano, assassinado em 1971.
A situação dele era muito parecida com a do
Fernando Santa Cruz. Ele passou pela Casa da Morte, DOI-Codi de São
Paulo e Rio de Janeiro, e aí foi aparecer na vala de Perus. Então há uma
possibilidade, ainda que remota, do corpo do Fernando Santa Cruz estar aqui
também. E para essas famílias que nunca tiveram resposta nenhuma, o não já
diz algo, porque permite poder afirmar que o seu familiar não está aqui.
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O novo presidente da CEMDP também
propôs a transferência das ossadas analisadas pelo Grupo de Trabalho Perus
para Brasília, o que só não não se concretizou porque o
Gabinete de Conciliação do TRF-3 impediu e disse que o material deveria ficar em São Paulo.
Bolsonaro já tentou encerrar as investigações por meio de decreto. Por que
especificamente a CEMDP e o GTP parecem incomodar tanto?
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As pessoas que, de algum modo, apoiam a
ditadura ou que acham que ela não foi tão grave, ficam incomodadas quando há
alguma identificação. A vala de Perus é a prova de que o governo ocultou
corpos. E os militares sempre negaram tudo isso. A identificação é uma prova
incontestável que confronta o discurso dos militares. A vala é um produto do
governo. Ninguém vai parar em um cemitério se não tiver um órgão público que
coloque essas pessoas lá.
Então toda vez que surge uma comprovação, fica
estampado que houve ditadura, que houve assassinatos e que o governo
municipal participou, escondendo esses corpos. Isso é ruim para os
simpatizantes desse período.
A questão do desaparecimento é um tema que
ninguém nunca quis tratar no Brasil, desde a Anistia, em 1979. Quando
aprovaram a Lei de Anistia (Lei 6.683/79),
ninguém falou nada sobre os desaparecidos. E de lá para cá os familiares não
conseguiram ser devidamente ouvidos. Houve apenas a Lei 9.140, que já tem 25
anos. E mesmo com essa norma, o Estado só reconheceu a morte daqueles
militantes políticos que foram assassinados em aparelhos policiais ligados à
repressão política. Foram admitidos apenas os casos praticamente
incontroversos, mas a existência da vala deixa o discurso oficial em aberto.
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Em 2010, o Supremo Tribunal Federal
teve a chance de rever a Lei de Anistia. A corte, no entanto, decidiu pela
sua manutenção. O STF deixou de ouvir os pedidos dos familiares de mortos e
desparecidos políticos ou não quis se indispor com os militares?
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As duas coisas. O Nelson Jobim [ex-deputado,
ministro e presidente do STF, ex-ministro da Justiça e da Defesa], que contou
ter negociado uma solução para os mortos e desaparecidos políticos,
explica muito bem o pacto que foi feito.
Os políticos queriam voltar à legalidade, as
cortes queriam voltar à normalidade. Todos eles deram sua palavra de honra
aos militares. Houve um avanço com a Lei 9.140, mas já faz muito tempo.
Se relacionarmos os marcos posteriores,
podemos ver que eles são muito afastados no tempo. Em 2006, por exemplo,
foi lançado o relatório da CEMDP; em 2012, foi criado o Grupo de
Trabalho Perus; de 2012 a 2014, houve a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Mas os relatórios produzidos por essas comissões apenas chancelaram o que os
próprios familiares já haviam descoberto.
As políticas de reparação, de memória, verdade
e justiça no Brasil sempre foram protocolares. Basta notar que o país precisou
ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em
2010 [Caso Gomes Lund e Outros] para que a CNV fosse criada. A
instauração dessa comissão era uma pauta bem mais antiga que isso.
No Brasil, causar mal-estar aos militares
sempre foi um problema. Nenhum governo lidou adequadamente com a questão
porque houve um pacto de impunidade e isso não é um mal apenas dos políticos
mais conservadores.
O Lula sempre foi muito mais ligado aos
movimentos sociais. Em 2010, quando o Estado brasileiro foi condenado a fazer
buscas na região do Araguaia [sul do Pará e hoje norte do Tocantins], ao
invés de ele dar estrutura para a CEMDP proceder e coordenar a busca, ele deu
suporte para o Ministério da Defesa.
Na época, os familiares ficaram de fora, só
participaram depois que o Ministério Público questionou a medida. Na
solenidade que instituiu a CNV, os generais estavam se sentindo
desconfortáveis. Na ocasião, a Vera Paiva, que era representante dos
familiares, foi convidada a falar, mas acabou desconvidada.
Entre descontentar os militares ou os
familiares, a Dilma escolheu descontentar os familiares. É como se as medidas
adotadas fossem sempre aplicadas com certo constrangimento. E todas as
políticas ocorreram por meio do impulso dos familiares. Muito mais poderia
ter sido feito e todos os presidentes — sobretudo os progressistas — deveriam
pedir perdão aos familiares, porque eles não fizeram o bastante.
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Acredita que essa omissão com relação
às políticas de memória ajuda a explicar o fenômeno Bolsonaro, que foi
eleito justamente com um discurso saudosista da ditadura?
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Com certeza. Quando falamos sobre Justiça de
Transição, não estamos falando apenas de processar os responsáveis pelos
assassinatos, mas de elucidar os crimes e dar uma resposta aos familiares.
Nesse sentido, o Brasil sempre adotou uma
conduta nacional em favor do esquecimento. A Argentina teve agora um governo
conservador, mas ninguém ousou atentar contra a democracia fazendo apologia a
torturadores. Isso nunca esteve em questão.
Aqui no Brasil, o Bolsonaro, enquanto
deputado, homenageou torturadores, fez apologia ao crime e declarações
pró-tortura. Isso configura quebra de decoro. Mas ele nunca foi questionado.
As nossas representações sempre foram arquivadas.
Quando ele se tornou candidato à Presidência
da República, deu declarações contra os princípios democráticos que estão na
Constituição sobre a qual ele iria jurar.
Não há compatibilidade com o exercício do
mandato. Mais da metade dos eleitores escolheu o Bolsonaro, mas a gente vive
em um Estado Democrático de Direito. Existe uma Constituição com princípios e
regras que são diariamente desrespeitadas por Bolsonaro.
Tentar derrubar um ordenamento vigente para
instituir outro se chama golpe ou revolução, não democracia, ainda que
estejamos falando de um presidente que foi eleito.
Parafraseando o Caetano Veloso, em terra em
que há tortura — ou a defesa dela —, ninguém é cidadão. Se houvesse Justiça
de Transição efetiva no Brasil, Bolsonaro não teria se tornado presidente.
Não teria sido eleito nem deputado.
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Após o Bolsonaro atacar o presidente da
OAB, Felipe Santa Cruz, a senhora se posicionou afirmando que "nunca um
presidente da República, nem mesmo da própria ditadura, ousou atacar uma
família de maneira tão vil". Dois dias depois, acabou exonerada da
CEMDP. Acredita que foi retaliação?
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Não tenho dúvida. Foi
perseguição política. O próprio Bolsonaro disse que agora o presidente é
de direita, como se isso fosse motivo para exonerar alguém e como se eu
tivesse declarado qualquer tipo de preferência política.
Eu estava simplesmente cumprindo o meu
trabalho. A Lei 9.140 determina que a CEMDP acolha as famílias, repare e reconheça
as responsabilidades do Estado. Negar essa responsabilidade e colocar em
dúvida quem é que matou essa ou aquela pessoa, jogando com a
contra-informação, como está sendo feito, é justamente o contrário. Bolsonaro
usou de um golpe baixo contra outra autoridade. Essa conduta abusiva atingiu
todas as famílias e eu respondi.
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segunda-feira, 2 de março de 2020
200302 - Proc. Eugênia Gonzaga
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