“AI-5 foi aprofundamento das bases legais da ditadura,
não golpe dentro do golpe”
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Mais
de 50 anos depois, o golpe militar de 1964 ainda causa controvérsia em alguns
círculos. Não é incomum que algum lado acuse os outros de golpistas ou de ter
sido conivente com um movimento autoritário, que tinha o extermínio de
dissidentes como uma política.
Com
os juristas, no entanto, a discussão é um pouco mais complexa. O golpe foi dado
para derrubar o presidente João Goulart e evitar a “ameaça comunista” e para
isso precisou instalar um regime de exceção. Precisou, portanto de
especialistas em Direito para criar uma “engenharia constitucional
autoritária”, afirma o professor Danilo Pereira Lima, da Faculdade de Direito da USP
Ribeirão Preto.
Essa
engenharia, ele conta, foram os atos institucionais e as emendas constitucionais criadas pelo governo para manter o
controle sobre o Legislativo. Foi o caso do primeiro Ato Institucional, que trouxe a célebre frase de que a
revolução se legitima por si própria, redigido pelo advogado Carlos Medeiros
Filho em parceria com Francisco Campos, o jurista de primeira hora para
governos autoritários da época.
“O
apoio da comunidade jurídica foi significativo”, diz Pereira Lima, em
entrevista exclusiva à ConJur. Ele acaba de lançar o livro Liberdade
e Autoritarismo: o papel dos juristas na consolidação da ditadura militar de
1964. A obra, resultado da tese de doutorado de Pereira Lima, pretende
analisar qual foi a contribuição da comunidade jurídica para a sustentação da
ditadura, um regime que começou de um golpe com apoio popular e foi se fechando
cada vez mais até transformar a tortura e o assassinato de dissidentes em
política de Estado.
A
tese foi orientada pelo professor Lenio Streck, um grande crítico do que chama de
instrumentalização do Direito pelos juristas. E a reclamação encontra ecos no
livro de Pereira Lima. Segundo ele, aquela época foi marcada por uma cultura
jurídica autoritária, que via o Direito de maneira ligada às questões políticas
da Guerra
Fria.
Por isso, não havia barreiras ao uso de instrumentos legais para perseguição de
dissidentes.
“Não
quis fazer uma caça às bruxas”, afirma Pereira Lima. “No Direito, falta
interesse pela história. Não existe a autocrítica de dizer ‘qual foi o papel da
comunidade jurídica nesse período? De que maneira contribuímos? E de que
maneira contribuímos para a resistência?’”
Leia
a entrevista:
Danilo Pinheiro Lima — Faltava uma analise mais aprofundada sobre o papel
do Direito na estabilização do regime militar. Quando ele aparecia, era como se
fosse um detalhe menor. E na pesquisa percebi que a criação de instrumentos
legais como os atos institucionais, a Lei de Segurança Nacional e toda a legislação de exceção foi
fundamental para que o regime conseguisse se organizar e conquistasse uma
estabilidade jurídica de 21 anos.
O
Direito tinha um papel duplo. Ao mesmo tempo que os militares o usavam para dar
um verniz de Estado de Direito (manteve o Supremo
Tribunal Federal
e o Congresso funcionando), também foi por meio do
Direito que o regime conseguiu construir essa engenharia constitucional
autoritária. E isso foi extremamente importante.
ConJur
— Uma das conclusões do livro é que havia uma cultura jurídica autoritária que
permitiu o golpe e a ditadura. O que foi essa cultura autoritária?
Danilo Pinheiro Lima — Um aspecto interessante da tese que não cheguei a
trabalhar, mas que pretendo me aprofundar, foi a aproximação entre os juristas
do Estado Novo, defensores de um Estado forte, tutor dos rumos da sociedade, e
os juristas da UDN, de tradição liberal, bastante críticos às experiências
totalitárias do país. E aí o principal nome era o Francisco Campos. Ele foi para o Brasil o que o Carl
Schmidt
foi para a Alemanha. Campos era um crítico da democracia liberal, defendia uma maior concentração de
poderes no Executivo, redigiu a Constituição de 1937 e depois de 64 ele foi muito
importante na redação do primeiro ato institucional, junto com o Carlos Medeiros da Silva.
ConJur
— E por que houve essa aproximação?
Danilo Pereira Lima — Em 64, esses dois grupos decidiram apoiar o golpe
e o regime, devido à resistência às Reformas de Base, e o anticomunismo era muito usado para isso. Então
esses juristas liberais se aproximaram dos juristas do Estado
Novo
para apresentar uma concepção instrumental do Direito. Teve até uma declaração
do Pontes de Miranda para um jornal às vésperas do golpe
em que ele disse que a Constituição precisava ser violentada para ser
preservada. Isso demonstra o caráter instrumental do Direito, que é uma coisa
que o Lenio ataca muito hoje, de não levar a sério as regras do jogo
democrático e romper com a Constituição quando parece conveniente para o meu
grupo político. E isso era muito presente no período de 1946
a 64,
que foi democrático, mas não muito.
ConJur
— O livro cita muitos juristas famosos como figuras de suporte à ditadura. Francisco Campos, Gama
e Silva,
Moreira
Alves,
Leitão
de Abreu,
Aliomar
Baleeiro,
Manuel
Gonçalves Ferreira Filho, enfim. Mas esses são os grandes
nomes da época, eram os juristas consultados por governos, faziam parte da vida
política do país. Esse movimento de apoio à ditadura foi generalizado, ou foi
uma coisa mais elitizada?
Danilo Pereira Lima — O apoio foi significativo. Se analisarmos a
composição do ministério durante os governos de exceção, quem mais contribuiu
foram os cursos de Direito, a maior parte dos ministros tinha formação
jurídica. Agora, era o contexto da Guerra Fria e existia essa análise muito mais
política e ideológica do Direito. No caso do Manuel Ferreira Filho, por
exemplo, encontrei vários textos dele defendendo claramente a flexibilização
dos direitos fundamentais para facilitar a repressão. E o baixo clero do
Direito acaba acompanhando essas posições.
Claro
que isso não era uma posição única. No último capítulo destaco a atuação de
diversos advogados no sentido de organizar uma resistência democrática ao
regime. Como as garantias estavam fragilizadas, o advogado ficava numa situação
complicada, não conseguia fazer uma defesa meramente jurídica. Só que, como o
regime tinha a necessidade de manter as aparências de Estado de Direito, o
advogado se esforçava ao máximo pra dar publicidade à prisão de seu cliente e
denunciar isso à opinião pública. E isso ajudou a salvar muitas vidas. Houve
alguns casos em que essa ação de advogados evitou o mal maior do assassinato e
do desaparecimento. O preso político chegava a ser torturado, mas graças à
atuação do advogado de dar publicidade ao caso, o governo não pode mais dizer
que ele está desaparecido.
Houve
também os casos dos indiferentes, os advogados que achavam que o Brasil passava
por um momento de normalidade. E houve o caso do Sobral Pinto, católico conservador, apoiou o
golpe, mas na semana seguinte ele já estava batendo de frente com os militares.
ConJur
— Agora, os juristas tinham escolha? Era um regime de violência.
Danilo Pereira Lima — Meu trabalho não pretende fazer discurso de caça
às bruxas. Minha intenção é tentar analisar de maneira crítica o papel que os
juristas tiveram naquela época para conscientizá-los que eles precisam assumir
responsabilidades de preservar o Estado de Direito e os direitos fundamentais. Hoje defender direitos e garantias
está ficando complicado. O sujeito que faz isso é rapidamente tachado de
favorável à corrupção. Revisitar essa passagem da nossa história é importante
para fortalecer o compromisso dos juristas com a democracia.
ConJur—
O que quero dizer é: os juristas foram ao governo oferecer seus préstimos ou
foram convocados pelos militares para ajudar?
Danilo Pereira Lima — O movimento de 64 teve um
respaldo social enorme, e isso não foi exclusivo dos juristas. Igreja,
empresários, jornalistas, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um
movimento de massa. O anticomunismo sempre foi muito forte no Brasil pelo menos
desde 1935, quando teve o levante comunista contra a ditadura Vargas. E quando
eu falo de juristas, me refiro aos grandes nomes, Manoel Ferreira Filho, Miguel
Reale,
Hely
Lopes Meirelles
— foi secretário de Segurança em São Paulo e ajudou a organizar a Oban. Esse pessoal acompanhou de perto as
movimentações dos militares e acompanhou essa ampla mobilização popular por
entender que, naquele momento, a intervenção dos militares era necessária.
Danilo Pereira Lima — Ao longo da ditadura foram surgindo diversas
disputas internas. Existia um entendimento interno entre os apoiadores em
relação a 64, mas depois começaram os rachas. No AI-5 já apareceu uma ruptura
importante: Pedro
Aleixo,
vice-presidente, jurista que vinha dessa tradição de criticar o Estado Novo,
percebeu que a coisa estava indo longe demais e resolveu criticar o regime
militar. Isso custou caro pra ele, que foi impedido de assumir quando Costa
e Silva
se afastou.
O
jurista Afonso Arinos também era ligado à mesma tradição
que Pedro Aleixo e começou a sentir que o regime estava se fechando de mais e
decidiu se afastar. Não fez oposição aberta, mas parou de apoiar.
ConJur
— O livro cita muitos nomes de tradição liberal, mas eles na verdade defendiam
valores conservadores para os padrões de hoje, não?
Danilo Pereira Lima — O liberalismo brasileiro que teve mais força
política tem uma postura muito elitista. Se formos à época do Império, os liberais eram ligados à escravidão e a uma concepção em que a sociedade sempre
aparece fragilizada e o Estado, organizador tomando as rédeas. E existe sempre
um receio da participação popular no processo político. Tanto é que um dos
motivos pro golpe de 64 foi uma proposta de emenda constitucional que ampliava o direito de voto para
os analfabetos.
Mas é claro que há graus diferentes de autoritarismo. Francisco Campos e Pedro
Aleixo e Afonso Arinos concordaram no golpe, mas têm posições jurídicas e
políticas bem diferentes.
ConJur
— Entre os advogados, a impressão que se tem é que a resistência à ditadura
sempre foi feita por criminalistas. Como as outras áreas do Direito se
comportaram?
Danilo Pereira Lima — É um ponto que chama atenção: o país vivia uma
situação autoritária e não encontrei ninguém nenhum constitucionalista famoso
que fizesse uma crítica ao regime. Pontes de Miranda, nos comentários que fez
às constituições de 67 e 69,
chegou a dar algumas declarações críticas ao regime. Mas foi o único caso.
Claro que hoje é muito mais fácil criticar abertamente a ditadura, não quero
ser injusto com os autores. Mas o que encontrei foi apoio entusiasmado entre os
constitucionalistas
ConJur
— E o Judiciário?
Danilo Pereira Lima — Foram pouquíssimas cassações. O Supremo apresentou
alguma resistência quando a composição foi alterada e três ministros foram
aposentados compulsoriamente, mas as demais instâncias não viram cassações.
Pesquisei as notas taquigráficas das reuniões para a formulação da Constituição de 69, e num dado momento os participantes
focam no Judiciário. O Gama e Filho, então, fala que é melhor não mexer em nada
que possa interferir no bolso deles, porque poderia haver uma resistência.
Então as demandas da magistratura e das entidades eram corporativas. Não
existia nada no sentido de fazer um apontamento crítico à questão autoritária,
aos riscos de aprofundamento do autoritarismo, nada. No Judiciário são raros os
casos de resistência.
ConJur
— O relatório da Comissão Nacional da Verdade descreve o Supremo como
“errático” até a edição do AI-5, mas a partir de 69 tornou-se um tribunal
dócil. O seu trabalho chegou à mesma conclusão?
Danilo Pereira Lima — Em 64, o presidente, ministro
Ribeiro da Costa, apoiou o golpe. Os demais ficaram em silêncio. Essas tensões
com as Forças Armadas eram muito comuns, e vários dos
ministros achavam que aquilo era uma crise, mas logo haveria uma conciliação e
tudo voltaria ao normal. E mesmo os que apoiaram, não imaginaram que o golpe se
tornaria numa ditadura de 21 anos. Então o presidente do Supremo apoiou,
participou da sessão que deu posse ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, enquanto João
Goulart
ainda estava em território nacional, no Rio Grande do Sul. E quando Castelo Branco assumiu ele o recebeu e manteve
relações respeitosas. As tensões só cresceram quando ficou claro que a intenção
do regime era interferir em questões internas do tribunal. E aí os setores mais
autoritários começaram a cobrar a cassação dos ministros indicados por JK e Jango,
Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Nesse momento de tensão o Supremo
chegou a tomar algumas decisões que desagradaram o governo, como a concessão de
alguns Habeas
Corpus,
como no caso de Miguel Arraes. Isso provocou uma crise dentro do
governo.
ConJur
— O Supremo chegou a bater de frente com o regime?
Danilo Pereira Lima — Em alguns momentos. Durante os governos Castelo
Branco e Costa e Silva, por meio da concessão de alguns HCs, e o presidente do
Supremo começou a se sentir ameaçado e que a autonomia funcional do Supremo
estava em risco, foi o momento de maior choque entre poderes. Mas depois, com a
cassação dos três ministros, o regime passou a ter um controle maior.
Talvez
o único problema que eles tiveram foi o episódio de Adaucto Cardoso. Ele foi deputado pela UDN
e apoiou o golpe, mas começou a criar dificuldades diante da vontade de cassar
deputados. Quando ele estava no Supremo, teve uma divergência num caso de
censura e simplesmente tirou a toga e nunca mais voltou, nem para o STF e nem
para a vida pública.
ConJur
— Outra conclusão interessante do livro é que o AI-5 não foi um “golpe dentro
do golpe” como se costuma se dizer, mas um “aprofundamento das bases legais do
regime”. Em que sentido?
Danilo Pereira Lima — A novidade do AI-5 foi a radicalização das bases
autoritárias. Mas desde o AI-1, desde o começo, já houve cassações, lideranças sindicais foram presas, já houve denúncias de
tortura. O AI-5 aprofundou isso, ampliou a possibilidade do regime de controlar
os segmentos que tentassem questionar a estrutura autoritária do regime. Então
foi uma situação de continuidade, não foi um ponto fora da curva. Ele
acompanhou o que o regime começou a fazer desde o primeiro dia da cassação de
João Goulart.
ConJur
— Delfim Netto, que foi um dos signatários do AI-5, já disse algumas vezes que
não sabia que aquilo tudo ia acontecer, e recentemente disse que, com aquelas
informações, teria assinado de novo. Isso é controverso, então?
Danilo Pinheiro Lima — Sim, tudo aquilo já acontecia antes. E tem outra
coisa: quando um setor político flerta com uma medida autoritária, mesmo que
não deseje tudo aquilo, ele abre as portas do inferno. E quando começa a
guerra, é difícil colocar as coisas no lugar. Ter rompido com a Constituição de
46, ter destituído um presidente da República, isso é abrir as portas do inferno. E é importante
também a questão da memória.
ConJur
— Que questão?
Danilo Pinheiro Lima — Depois que terminou a ditadura, a memória liberal,
do empresariado foi que fizemos isso porque o comunismo representava uma
ameaça, a tortura aconteceu, mas não temos responsabilidade, foi culpa dos
órgãos de repressão, que exageraram na dose. Mas a historiografia tem
desmentido isso, como no caso do Geisel, dos documentos que agora surgiram.
ConJur
— O que os documentos negam?
Danilo Pinheiro Lima — A versão mais aceita para Geisel é a de que ele
era um moderado que estava planejamento a abertura. Mas esses documentos
mostram que ele tinha conhecimento do que acontecia, dos desaparecimentos e dos
assassinatos, e isso era uma decisão tomada dentro do Poder Executivo. A
transição que o Geisel queria era uma transição controlada, e ele achava que
não poderia fazer isso sem eliminar os comunistas, e foi o que ele fez.
O
caso do Partidão, do PCB,
é emblemático. O PCB não optou pela luta armada, sempre teve uma postura
reformista, de apoio às Reformas de Base. Quando aconteceu o golpe, houve
várias dissidências que foram para a luta armada, mas o PCB continuou tentando
articular uma resistência civil e, num primeiro momento, com exceção de Gregório Bezerra, nenhum grande líder do Partidão foi
preso. E depois que a luta
armada
já tinha sido dizimada, a Guerrilha do Araguaia, vencida, o regime se voltou contra
os dirigentes do PCB. E aí vários foram trucidados, e isso passava pelo
Executivo. Eles passaram o trator nessa época, tudo sob ordens do presidente da República.
ConJur
— E a OAB? A Ordem apoiou não só o golpe como
também a ditadura mesmo, durante mais de dez anos. A pesquisa chegou a
investigar os motivos disso?
Danilo Pinheiro Lima — Teve a questão corporativa. Havia a informação de
que Jango estava se aproximando do Sindicato dos
Advogados
e a OAB receava perder representatividade junto à classe. Mas a oposição da OAB
ao Jango seguiu a mesma lógica dos juristas, jornalistas, do clero etc. Eles
achavam que o governo João Goulart era uma ameaça pra concepção de democracia
liberal que eles tinham, e achavam que as Reformas de Base seriam um primeiro
passo para o Brasil passar por uma revolução comunista como foi a Revolução
Cubana.
A OAB seguiu essa linha, boa parte de seus presidentes para um ministério. A
cúpula da Ordem exerceu cargos importantes durante a ditadura.
A
posição da Ordem só mudou em 1975, 1976, com a atuação muito relevante de Raymundo Faoro e de Seabra Fagundes. Mas a OAB só entrou na oposição
mesmo quando ganhou força a tese da resistência civil democrática. Mas de 64
até a primeira metade dos anos dos anos 70 a OAB defendeu o regime sem dar
muita importância às denúncias de tortura e assassinato. Os advogados que iam
lá fazer essas denúncias eram excluídos.