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Saber Nenhum, os textões, as letrinhas...
e a crise do Direito
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A charge acima diz aquilo que
não sei se conseguirei dizer na sequência. É que o chargista Rafael Corrêa, genial, conseguiu roubar a cena. Faz, ao
mesmo tempo, (i) uma crítica arrasadora aos tempos “pós-modernos” das redes sociais, em que textos com mais de dez linhas são rejeitados pela
malta, (ii) arrasa com a cultura pret-à-porter e ao anti-intelectualismo tão bem desenhado e criticado por Alasdair MacIntyre
(After Virtue).
E, claro, (iii) a charge atinge em cheio o que disse o presidente da República
sobre os livros didáticos,
porque teriam muitas letras: um montão de amontado de muita coisa escrita.
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a) O triunfo do Saber Nenhum!
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Não vou querer neste pequeno espaço fazer tese
sobre as razões pelas quais vivemos esta era do anti-intelectualismo ou do Know Nothing (o
Saber Nenhum) da distopia de MacIntyre. Há bons autores que já trata(ra)m
disso. Gosto muito da “pirâmide” (o epíteto
é meu) de T.S. Eliot: informação
não é conhecimento, que não é saber, e que não é sabedoria. Ou, sendo-lhe
mais fiel: Onde está a vida que perdemos no viver? Onde está a
sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos
na informação?
Na Era da (des)Informação em que vivemos,
praticamente todos, com click, têm acesso a um mundo que vem
“dado”, à disposição de qualquer tapado. Mas, então, por que existem tantos néscios
vagando feito Walking dead pelas ruas e faculdades? Simples:
porque é necessário transformar a informação em conhecimento. E, com mais
esforço, vem o saber. E a sabedoria pode ser tudo isso transformado em
vivência. Por isso a “pirâmide” tem a base tão extensa, lotada de gente
(des)informada pelo mundo das redes. Paradoxo: tanta informação e tanta
ignorância.
No Direito, vivemos a era da facilitação,
mastigação, tuitização e resumização de conteúdos. Memes. Macetes. Decorebas.
Burrice virou coisa fashion. Concursos recheados de pegadinhas. E
gente que “ensina” Direito sem qualificação. Repetem informações. Que,
paradoxalmente, os alunos podem pegar... na internet.
Círculo viciosíssimo.
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b) Porque textos com mais de dez linhas são malditos
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Logo, qual é a função do “professor”? Simples:
Fazer um atalho na preguiça dos alunos. Reproduzir, gerando gente como o
estudante chinês, personagem do belo livro
de Bernardo Carvalho, Reprodução. O
livro mostra como todos os absurdos
podem ser ditos e difundidos de maneira irresponsável e sem fonte; todos -
inclusive minha tia - têm uma opinião definitiva sobre qualquer coisa. O
personagem-estudante-chinês é o protótipo do indivíduo-produto deste tempo.
Mas, atenção: o livro Reprodução é cheio de letrinhas.
Textão. Putz. Quem se anima?
Sigo. Aqui mesmo na ConJur textos
longos não são bem-vindos. Comentaristas — a maioria escondidos no anonimato
pós-moderno, leem apenas o título. E odeiam a priori. Mas são
contundentes. E criticam a orelha do texto. Aliás, críticos de orelha se
multiplicam no Direito. Os livros não deveriam ter orelhas. E nem quarta capa
com texto. Vou propor esses cortes. Temos de desfacilitar o trabalho da
malta.
E a coisa piora dia a dia. Basta ver a
declaração do presidente da República. Vamos
colocar mais figurinhas e menos letrinhas nos livros nas escolas.
Ótimo, diz minha tia-que-virou-cientista-política. Maravilha, dizem os
tiozões que passam o dia nas neocarvernas, como terroristas de IA -
Ignorância Artificial. Abaixo o textão, diz o menino com fone de ouvido e
celular na mão. Livros didáticos tem de ter figurinhas e o hino.
Isso.
Nas redes, os ignorantes perderam totalmente o
filtro. Ofendem, xingam..., mas nem conseguem escrever corretamente os
próprios xingamentos. É comum ver néscios separando sujeito e verbo. E, é
claro, odeiam textos com mais de dez linhas. E odeiam coisas sofisticadas.
Eis a comprovação do Know Nothing.
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c) O UBER chegou no Direito — por edital
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E vai piorar mais ainda. Vi, por estes dias,
um edital “institucionalizando” a uberização do Direito. Explico: assim como
o cara que dirige Uber
tem discurso empreendedorista (palavra da moda), agora você pode ser
professor sem sair de casa ou algo assim (lembro do velho Instituto Universal Brasileiro - IUB
- recordar é viver : veja aqui comercial antigo). Pode ser professor sem ser
professor; pode ser professor sem contrato com Faculdade ou Universidade.
Igual ao motorista de Uber sem carro - alugue um. Fala-se em EAD invertido
(sic). Detalhe: Li a notícia e constatei, inclusive, que há a separação do
sujeito e do verbo, verbis: “Todos os candidatos inscritos, terão acesso...
Sim, professor ad hoc. Professor
de aluguel. O professor fica em casa e pode ser chamado por plataforma, como
o motorista do Uber. E já vem o valor que vai receber pela corrida, quer dizer,
aula. Não há prova nem classificação de candidatos. O candidato deve gravar
uma vídeo aula de 5 minutos. Esse é o teste. Para qualquer disciplina.
Que tal o novo empreendedorismo epistêmico? O
tal negócio, que promete um “processo seletivo simplificado” (poxa, até isso
é simplificado!) com edital e tudo (!) diz que “O Futuro é Agora” e que a
educação é “4.0”, promete um cadastro de professores-ubers para “Aulas
Interativas Online”. Não vou eu colocar o link aqui, não pretendo incentivar
a tal educação 4.0. Mais: nestes tempos em que não há mais verdades, e fato e
ficção são a mesma coisa, é até difícil saber se o negócio é verdadeiro.
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Não importa: é mais uma expressão do Geist destes
nossos distópicos tempos de Know Nothing. Como duvidar, afinal,
quando o presidente quer “suavizar” os livros didáticos? Bom, no Direito isso
já foi feito de há muito. Sinopses jurídicas. Com as quais não se faz
sinapse. Resumos. Resumões. E macetes. Que causam vergonha alheia.
Pois é. Meus textos dos anos 90 eram, mesmo,
distópicos. Profetizei. Quando brincava com exemplos tipo Caio e Ticio,
gêmeos xifópagos que brigam à faca, “agressão atual é a que está acontecendo
e iminente é a que está para acontecer”, “coisa móvel alheia é a que não
pertence à pessoa”, “interpretar a lei é retirar tudo o que nela contém”
(lipoaspiração epistêmica) e coisas desse tipo, não pensei que tudo isso
poderia vir a ser “sofisticado”. Sim, porque o Direito, o ensino, tudo parece
ter sido whatsapzado, startupizado.
Qual é o próximo passo? Fahrenheit 451? (Aos
que não entenderam a referência, cuidado: trata-se de... um livro! Um montão
de amontoado de coisa escrita; muitas letras acolheradas - para os
preguiçosos, tem um resuminho no Google - vejam como sou bonzinho: para
facilitar a vida de quem não quer perder tempo lendo, aí vai o site O
Poderoso Resumão, em que fala do Fahrenheit 451 - aqui).
Mas, enfim, penso, já é hora de parar de
escrever e ir para o café. A rubiácea
me espera. Calma. Rosane não mudou de nome. Falo da infusão de rubiácea que,
fumegante, me aguarda.
Sem contar que isso aqui já está virado em um
montão de amontoado de muita coisa escrita. Ups!
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e) Dica final – Onde tudo começou!
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Ao filósofo Voltaire os néscios causavam
horror. Para saber mais sobre néscios e sua origem, recomendo este texto (recheado
de letrinhas): E eles tem a vantagem de não
saber que não sabem.
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quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
200109 - Jurista Lenio Streck
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